quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Não digas o nome porque o não tem. Não procures a razão porque a não há. São momentos inexplicáveis de uma certa beatitude ou de uma certa melancolia ou afundamento, que é mais forte. São momentos que nos aparecem e em que nos sentimos em paz desbordante, um bem-estar da alma em que há um sorriso a querer sorrir por dentro e a imaginarmos por fora, mas ninguém o vê. Não é alegria, que faz muito barulho. Não é entusiasmo excitado, que ainda mais. É um abandono feliz de nós, uma serenidade que nos aproxima da verdade simples de o mundo existir e em que mesmo a morte não nos pode perturbar. Isso nos acontece em certas horas do dia que reflexamente nos evoca outros dias e horas de um tempo muito antigo em que fomos felizes à memória que os alcança. Ou podemos estar sucumbidos também sem razão, ou uma razão tão submersa que a não sabemos. Um certo cair da noite, uma grande distância de uma erma planura ou do mar donde alguém que não vemos nos faz sinais que não entendemos, um cão que ladra longe, um canto de alegria algures que se calou, a memória de nada em frente do lume do fogão, são entre outros, motivos de uma fractura dentro de nós, da quebra da nossa inteireza que nos faz ser tudo do que é em nós, uma razão bastante para aí nos afundarmos em melancolia como uma melancolia perdida.

Vergílio Ferreira in Escrever

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).
Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.


Miguel Torga